Imigração e Escravidão
O projeto imigrantista no Brasil escravocrata
Diante da dificuldade de empregar, ou melhor, submeter trabalhadores mestiços, pobres e livres (dentro de um regime de trabalho ainda servil), os grandes proprietários de terras – em especial, da cafeicultura paulista, maioria dentre os cargos políticos junto ao Império –, recorreram a um plano de substituição desses trabalhadores “indolentes” por imigrantes estrangeiros.
Nesse período, o sistema socioeconômico brasileiro ainda estava totalmente imerso na escravidão. Ainda que a população mestiça, pobre e livre, crescesse vertiginosamente, os proprietários de terras e senhores de escravos estavam acostumados com um trabalhador legalmente servil. Por terem dificuldade de aceitar lidar com um trabalhador dentro de outro regime que não fosse o escravista, eles criaram mecanismos para controlar o trabalhador livre ou liberto.
Assim, emergia um conflito constante entre empregadores acostumados à posse de suas “mãos-de-obra” e seus trabalhadores, descendentes de escravizados, nascidos livres ou libertos por lei, que resistiam a qualquer tentativa de dominação imposta.
A novidade aconteceu para ambos os lados, principalmente no meio rural, mediante ao crescimento de uma categoria de trabalhadores negros (pretos e pardos) que deveriam ser remunerados integralmente por suas atividades, que não poderiam ser castigados fisicamente e nem forçados a permanecerem nas fazendas ou em qualquer outro espaço de trabalho. Pela primeira vez, trabalhadores negros tinham, teoricamente, o direito de ir e vir para exercer uma atividade rural ou urbana.
Tudo ainda era muito novo naquele momento. O território no qual o direito de oprimir, explorar, castigar e negociar um ser humano era legalizado, agora, seria solo para o surgimento de uma nova categoria social: a do mestiço que não aceita, que nem poderia ser enquadrado nesse modelo de relação trabalhista e socioeconômica. Reivindicando um lugar de direito, sendo descendente ou emancipado de uma população – para a qual não havia leis de proteção ou direito, que sequer fora considerada cidadã deste território, sem o Estado para proteger ou recorrer –, encontra-se o mestiço.
Por essa e outras razões, o Presidente do Conselho de Ministros e o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, João Vieira Casanção de Sinimbú, convocou um Congresso Agrícola, em julho de 1878, para discutir os rumos econômicos do País. Segundo Peter Eisenberg, estes Congressos Agrícolas (no Rio de Janeiro e Recife), que ocorrem no final da década de 70, do século XIX, foram extremamente desfavoráveis, em termos econômicos, aos escravocratas sulistas, em virtude da queda nos preços da saca de café e, para os nortistas, em virtude da seca de 1877 a 1879.
Várias questões foram discutidas nesses Congressos, dentre elas, as que estavam ligadas ao emprego do trabalhador nacional pobre, livre e mestiço, em um Brasil escravista, e o emprego de imigrantes brancos e estrangeiros... Um debate que gerou discursos divergentes e, até mesmo, contraditórios, tanto no Rio de Janeiro quanto em Recife.
A primeira pergunta do Ministro da Agricultura para os grandes proprietários e procuradores no Congresso do Rio foi sobre as necessidades mais urgentes da grande lavoura. A resposta majoritária foi a “falta de braços”. A alegada “falta de braços”, que continuou sendo reclamada na década de 1880, consiste seguramente em um mito. E sua alegação deu margem à efetivação de um complexo sistema de imigração europeia subsidiada pelo Império brasileiro.
Havia, na verdade, uma divergência quanto à utilização do trabalhador livre nacional, descendente de escravizados ou libertos, por considerá-lo inadequado ao sistema de grande lavoura em virtude de uma suposta “indolência”. O que, na verdade, escondia a dificuldade do proprietário escravocrata em lidar com um trabalhador que nega o regime da completa opressão e privação de liberdade. Ao mesmo tempo, surgiam discursos e expectativas atribuídas a imigrantes estrangeiros, na crença de que se adequariam melhor às necessidades dos grandes proprietários e demais escravistas.
Evidenciam-se, então, as dificuldades de estabelecer um regime de trabalho livre e aceitar outros moldes de disciplina que não o escravista. O problema não estava na falta de braços, mas, sim, no fim desse sistema que, para alguns agricultores, era mais viável e cômodo do que qualquer outro. No fim das contas, o Brasil foi o último País a encerrar o tráfico internacional, bem como o interprovincial e a própria escravidão negro-africana.
A introdução dos imigrantes estrangeiros funcionou como uma alavanca na depreciação do mercado de trabalho nacional – composto majoritariamente por homens e mulheres mestiços –, em decorrência da queda dos salários, ocasionada pelo enorme contingente de trabalhadores imigrados.
De acordo com o Barão do Rio Bonito, durante o Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, em 08 de Julho de 1878:
“(...) A instrução agrícola é também uma necessidade; e penso que o melhor processo seria a fundação de colonias em differentes pontos, onde os nacionais podessem aprender praticamente o emprego dos instrumentos aratorios, e todos os mais processos seguidos pelos paizes adiantados. (...)
A grande lavoura do Sul do Imperio não tem actualmente falta de braços, porque ainda pode encontrar porção de escravos á venda no mercado da Corte. (...)
Além do que, não me parece de boa administração o baldear para o Sul a maior parte dos escravos do Norte. (...)
Seja ou não educado convenientemente o ingenuo, filho de escrava, nunca poderá vir a ser um bom productor na grande propriedade, sem que se altere o regulamento para a execução da lei de 28 de setembro de 1871, de forma a obrigar o ingenuo a trabalhar na propriedade a que pertencer, até á sua maioridade.
É uma classe nova de individuos, que constitue uma excepção, e para a qual é forçoso haver regulamento especial; até porque, augmentada ella em numero crescido, bem longe de tornar-se útil, pode constituir um elemento de desordem, desde que não haja recurso para obrigal-a a trabalhar.”
Os filhos da Lei do Ventre Livre, denominados ingênuos, são citados nesses Congressos como outra possibilidade de complementação do mercado de trabalho, já que a pressão internacional pelo fim da escravidão no Brasil estava cada vez maior.
Os escravistas, além de buscarem todas as estratégias para protelar a perda de uma grande parcela de seu patrimônio, depositada nesses corpos negros, contabilizados como investimento, como um bem móvel, também resistiam à chegada de uma apavorante mudança social e cultural: a assustadora possibilidade de ter que aprender a lidar com outra relação de trabalho – que nem estava prevista em lei – com homens e mulheres negros, até então, considerados coisas. Agora, eles deveriam ser considerados pessoas para se tornarem trabalhadores remunerados. Ou seja, estavam diante da necessidade de mudança na maneira como viam esse outro diante do mundo.
Os ingênuos eram, também, um novo problema, pois constituíam uma outra categoria de trabalhador livre nacional. Crianças e jovens negros, filhos diretos de pais escravos, mas nascidos após a Lei do Ventre Livre, passaram a ser visados por esses grandes proprietários como uma possibilidade a mais de não se desvincular das costumeiras relações escravistas de trabalho.
Sendo assim, os proprietários que discursaram nos Congressos Agrícolas concluíram que caberia, ao Império, o encargo de educar esses filhos de mães escravas para introduzi-los no trabalho agrícola, obrigando-os a permanecer nos mesmos locais e mesmas estruturas nas quais viviam seus pais. Propostas de “escolas” e de “educação agrícola” surgiram.
É óbvio que a lógica da própria Lei já era invalidada pela incapacidade dessas crianças, efetivamente, tornarem-se livres. Mas também é óbvio que a principal intenção desses congressistas era garantir mais uma geração de negros e mestiços subjugados e mantidos em um regime de condições análogas à escravidão, ainda que a abolição viesse a ocorrer.
O projeto de imigração também foi uma exigência dos congressistas ao Império brasileiro. Ele não apenas aprovou, financiou, mas, também, investiu recursos públicos para viagens, propagandas em panfletos e, até, cessão de navios da marinha para trazer esses imigrantes brancos, pobres e livres – atraídos pela promessa de se tornarem colonos em fazendas de agricultura comercial e, um dia, receberem a posse dessas terras –.
Tal promessa jamais foi feita aos africanos, arrancados de suas terras, tampouco aos seus descendentes, libertos pela Lei dos Sexagenários ou do Ventre Livre. Ela sequer fazia parte da legislação que outorgou a Abolição.
A escolha por imigrantes que viessem da Europa convergia inúmeros fatores positivos para esses escravistas: famílias que buscavam melhores condições de vida, fugindo de regiões de guerra e fome; sujeitos de raça branca que poderiam dar continuidade à "pureza" desejada da futura nação brasileira. Assim, foi oficialmente estruturado um projeto de imigração estrangeira, tendo vários filhos e procuradores desses escravistas como agenciadores da imigração, tanto nos países europeus quanto aqui, no Brasil, nos portos e hospedarias de Imigrantes e Colônias de regiões agrícolas.
Referências
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