Raça e Racismo
“Há cerca de 40 anos, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente (cf. Jean Hiernaux, J. Ruf-fié, A. Jacquard, F. Jacob, etc.). Chegaram mesmo até a preconizar a eliminação do conceito de raça dos dicionários, enciclopédias e livros científicos como medida de combate ao racismo. Não demoraram a concluir que essa proposta era uma ingenuidade científica, dando-se conta de que a ideologia racista não precisava do conceito de raça para se refazer e se reproduzir. O apartheid existia como demonstração da radicalização do racismo sem lançar mão da palavra raça.”
Kabenguele Munanga, 2005
É sabido, hoje em dia, que “raça” é um conceito social e político, não um dado científico a ser estudado ou comprovado por biólogos e geneticistas. No entanto, a experiência social do racismo torna o conceito de raça absolutamente concreto e vivo nas práticas discriminatórias e preconceituosas dos racistas, com suas vítimas.
No Brasil, o racismo se instituiu sob uma base de negação da existência a determinados povos. No entanto, a prática diária, diluída nas relações, marcada nos índices de violências, denuncia que mesmo tendo origem em um dado científico ultrapassado, o racismo tem consequências que perpetuam em forma de hierarquias raciais, ou seja, raças humanas.
A sociedade branca, europeia e escravista instituiu um lugar de superioridade acadêmica, religiosa e racial para si própria. Estabelecendo uma ideologia de raça sobre os povos africanos – base do processo de dominação colonial –, os taxaram, por uma pseudociência, como uma raça inferior.
Isso perdura no imaginário dos brasileiros até os dias atuais.
Essas falsas teorias, há muito tempo derrubadas, serviram para justificar as invasões dos reinos e territórios africanos para a exploração mineral e biológica. A pilhagem dos tesouros econômicos e tecnológicos, além da apropriação de saberes intelectuais e culturais nunca creditados à suas verdadeiras origens se transformaram na história de vitória dos reinos como os gregos e romanos.
Relegando os reinos e povos da África ao estigma de atrasados, “bárbaros”, ignorantes, ateus, explicam-se as violências a desumaniza-los e a diminui-los a uma subcategoria humana, socioeconômica e religiosa, a dos escravos.
Essa demarcação, sustentada por teorias absurdas, porém, registrada em publicações oficiosas, discursos religiosos e políticos tornaram-se verdades tão absolutas que nações africanas foram cristalizadas, bem como seus povos e toda a sua descendência, a essa representação de inferioridade biológica e sociocultural.
Hoje, não há dúvidas de que a estória da raça ou das raças é uma construção política pautada sobre bases econômicas das sociedades contemporâneas. Trata-se de um tabu, uma roupagem inventada para que tudo, relacionado à história e à cultura negra, seja descaracterizado e negado. Um exemplo que ilustra essa afirmação, elaborado por Silvio de Almeida, é um convite ao senso crítico, que permite observar: nem a luta por liberdade e civilidade é interpretada da mesma maneira para brancos e negros. Segundo Silvio de Almeida,
“os mesmos que aplaudiram a Revolução Francesa viram a Revolução Haitiana com desconfiança e medo, e impuseram toda a sorte de obstáculos à ilha caribenha, que até os dias de hoje paga o preço pela liberdade que ousou reivindicar”.
No século XIX – época na qual foram constituídas bases científicas, políticas e culturais da então nação brasileira –, a Biologia, a Física e a Medicina se prestaram a interesses políticos para inventar teorias, falsamente comprovadas, de que havia um determinismo biológico e demográfico que predominava sobre as condições morais, intelectuais e psicológicas dos seres humanos.
Daí a existência de raças humanas, pautada não apenas nas questões físicas, mas principalmente em diferenças psicológicas condicionadas, inclusive, pelos climas tropicais, que tornaria os povos dessas regiões lascivos, imorais, violentos e destituídos de qualquer capacidade intelectual. Eis a explicação para a adequação, praticamente “natural”, à condição de escravo e total inadequação à condição de cidadão, a essas pessoas. Fato que isentou países e povos europeus de qualquer culpa por roubar os direitos dos povos africanos com relação a seus territórios, sua riqueza, História e liberdade. Uma injustiça que marcou não apenas aquelas nações diretamente prejudicadas, mas, também, as que viriam a existir, no futuro.
Após combinar todos esses “desencontros” nos estudos das inúmeras classificações de raças e sub-raças com os avanços da própria ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), chega-se à conclusão de que raças humanas não existem. Ou seja, o conceito de raça não é uma realidade biológica.
No entanto, no campo sociopolítico, o estrago já estava feito.
Através do racismo científico de Arthur de Gobineau, Cesare Lombroso, Enrico Ferri, na Europa, e Silvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues, no Brasil, essas divisões estanques, engessadas e violentas tornaram-se uma realidade que dizimou povos inteiros do continente africano e formou nações inteiras de descendentes completamente relegados ao lugar de inferioridade fora da África. Esse é o caso do Brasil.
Alguns biólogos antirracistas reivindicaram que o conceito de raça fosse banido dos textos e estudos acadêmicos, já que fora comprovada a sua inexistência e, pior, a sua letalidade sociopolítica. No entanto, outros estudiosos da mesma área, bem como os cientistas das Ciências Humanas defendiam a manutenção do termo por sua concreta existência social e política, presente nas relações entre os sujeitos da sociedade e nas estruturas racializadas pelo mundo. Assim, nasce, em 1920, o conceito de racismo.
Portanto, o racismo não é a existência de raças humanas e sim a crença nessa teoria que gera, no sentido sociológico, uma concreta segregação sócio-econômica dentro das sociedades. Porque a raça existe no imaginário do racista e não se define apenas no campo físico, mas também nos campos intelectual e social, gerando exclusões e diferenciações nos âmbitos das políticas públicas, dos postos de liderança, bem como nas oportunidades e direitos para os grupos vitimados pelo conceito e pela prática racista.
Referências
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