Raça e Racismo

Atos organizados pelo Movimento Negro Unificado na década de 70, durante a ditadura no Brasil –– Jesus Carlos, Memorial da Democracia.

 

“Há cerca de 40 anos, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente (cf. Jean Hiernaux, J. Ruf-fié, A. Jacquard, F. Jacob, etc.). Chegaram mesmo até a preconizar a eliminação do conceito de raça dos dicionários, enciclopédias e livros científicos como medida de combate ao racismo. Não demoraram a concluir que essa proposta era uma ingenuidade científica, dando-se conta de que a ideologia racista não precisava do conceito de raça para se refazer e se reproduzir. O apartheid existia como demonstração da radicalização do racismo sem lançar mão da palavra raça.”

Kabenguele Munanga, 2005

PLANETA DO FUTEBOL. Twitter, 2022. Lamentável: torcedor do River Plate jogando banana para a torcida do Fortaleza. Disponível em: https://twitter.com/futebol_info/status/1514427549165789188 Acesso em: 18 nov. 2022.

É sabido, hoje em dia, que “raça” é um conceito social e político, não um dado científico a ser estudado ou comprovado por biólogos e geneticistas. No entanto, a experiência social do racismo torna o conceito de raça absolutamente concreto e vivo nas práticas discriminatórias e preconceituosas dos racistas, com suas vítimas.

No Brasil, o racismo se instituiu sob uma base de negação da existência a determinados povos. No entanto, a prática diária, diluída nas relações, marcada nos índices de violências, denuncia que mesmo tendo origem em um dado científico ultrapassado, o racismo tem consequências que perpetuam em forma de hierarquias raciais, ou seja, raças humanas.

A sociedade branca, europeia e escravista instituiu um lugar de superioridade acadêmica, religiosa e racial para si própria. Estabelecendo uma ideologia de raça sobre os povos africanos – base do processo de dominação colonial –, os taxaram, por uma pseudociência, como uma raça inferior.

Isso perdura no imaginário dos brasileiros até os dias atuais.

Essas falsas teorias, há muito tempo derrubadas, serviram para justificar as invasões dos reinos e territórios africanos para a exploração mineral e biológica. A pilhagem dos tesouros econômicos e tecnológicos, além da apropriação de saberes intelectuais e culturais nunca creditados à suas verdadeiras origens se transformaram na história de vitória dos reinos como os gregos e romanos.

Relegando os reinos e povos da África ao estigma de atrasados, “bárbaros”, ignorantes, ateus, explicam-se as violências a desumaniza-los e a diminui-los a uma subcategoria humana, socioeconômica e religiosa, a dos escravos.

Essa demarcação, sustentada por teorias absurdas, porém, registrada em publicações oficiosas, discursos religiosos e políticos tornaram-se verdades tão absolutas que nações africanas foram cristalizadas, bem como seus povos e toda a sua descendência, a essa representação de inferioridade biológica e sociocultural.

Hoje, não há dúvidas de que a estória da raça ou das raças é uma construção política pautada sobre bases econômicas das sociedades contemporâneas. Trata-se de um tabu, uma roupagem inventada para que tudo, relacionado à história e à cultura negra, seja descaracterizado e negado. Um exemplo que ilustra essa afirmação, elaborado por Silvio de Almeida, é um convite ao senso crítico, que permite observar: nem a luta por liberdade e civilidade é interpretada da mesma maneira para brancos e negros. Segundo Silvio de Almeida,

“os mesmos que aplaudiram a Revolução Francesa viram a Revolução Haitiana com desconfiança e medo, e impuseram toda a sorte de obstáculos à ilha caribenha, que até os dias de hoje paga o preço pela liberdade que ousou reivindicar”.

No século XIX – época na qual foram constituídas bases científicas, políticas e culturais da então nação brasileira –, a Biologia, a Física e a Medicina se prestaram a interesses políticos para inventar teorias, falsamente comprovadas, de que havia um determinismo biológico e demográfico que predominava sobre as condições morais, intelectuais e psicológicas dos seres humanos.

Daí a existência de raças humanas, pautada não apenas nas questões físicas, mas principalmente em diferenças psicológicas condicionadas, inclusive, pelos climas tropicais, que tornaria os povos dessas regiões lascivos, imorais, violentos e destituídos de qualquer capacidade intelectual. Eis a explicação para a adequação, praticamente “natural”, à condição de escravo e total inadequação à condição de cidadão, a essas pessoas. Fato que isentou países e povos europeus de qualquer culpa por roubar os direitos dos povos africanos com relação a seus territórios, sua riqueza, História e liberdade. Uma injustiça que marcou não apenas aquelas nações diretamente prejudicadas, mas, também, as que viriam a existir, no futuro.

Em qualquer operação de classificação, é preciso primeiramente estabelecer alguns critérios objetivos com base na diferença e semelhança. No século XVIII, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor d’água entre as chamadas raças. Por isso que a espécie humana ficou dividida em três raças estancas que resistem até hoje no imaginário coletivo e na terminologia científica: raça branca, negra e amarela. Ora, a cor da pele é definida pela concentração da melanina. É justamente o degrau dessa concentração que define a cor da pele, dos olhos e do cabelo. A chamada raça branca tem menos concentração de melanina, o que define a sua cor branca, cabelos e olhos mais claros que a negra que concentra mais melanina e por isso tem pele, cabelos e olhos mais escuros e a amarela numa posição intermediária que define a sua cor de pele que por aproximação é dita amarela. Ora, a cor da pele resultante do grau de concentração da melanina, substância que possuímos todos, é um critério relativamente artificial. Apenas menos de 1% dos genes que constituem o patrimônio genético de um indivíduo são implicados na transmissão da cor da pele, dos olhos e cabelos. Os negros da África e os autóctones da Austrália possuem pele escura por causa da concentração da melanina. Porém, nem por isso eles são geneticamente parentes próximos. Da mesma maneira que os pigmeus da África e da Ásia não constituem o mesmo grupo biológico, apesar da pequena estatura que eles têm em comum.

No século XIX, acrescentou-se ao critério da cor outros critérios morfológicos como a forma do nariz, dos lábios, do queixo, do formato do crânio, o ângulo facial, etc. para aperfeiçoar a classificação. [...] As pesquisas comparativas levaram também à conclusão de que os patrimônios genéticos de dois indivíduos pertencentes a uma mesma raça podem ser mais distantes que os pertencentes a raças diferentes; um marcador genético característico de uma raça, pode, embora com menos incidência, ser encontrado em outra raça. Assim, um senegalês pode, geneticamente, ser mais próximo de um norueguês e mais distante de um congolês.
— Kabenguele Munanga

Folha de São Paulo. UOL/Celebridades, 2019. Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso anunciam gravidez: 'Fomos pegos de surpresa. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2019/12/giovanna-ewbank-e-bruno-gagliasso-anunciam-gravidez-fomos-pegos-de-surpresa.shtml. Acesso em: 18 nov. 2022.

 

Após combinar todos esses “desencontros” nos estudos das inúmeras classificações de raças e sub-raças com os avanços da própria ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), chega-se à conclusão de que raças humanas não existem. Ou seja, o conceito de raça não é uma realidade biológica.

No entanto, no campo sociopolítico, o estrago já estava feito.

Através do racismo científico de Arthur de Gobineau, Cesare Lombroso, Enrico Ferri, na Europa, e Silvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues, no Brasil, essas divisões estanques, engessadas e violentas tornaram-se uma realidade que dizimou povos inteiros do continente africano e formou nações inteiras de descendentes completamente relegados ao lugar de inferioridade fora da África. Esse é o caso do Brasil.

 
Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam.
— Silvio de Almeida
 

Portal de Notícias da Globo. G1 MT, 19/04/2017. Reprodução de mensagem publicada no Facebook. Disponível em: https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/universitario-que-fez-post-racista-em-rede-social-diz-que-foi-infeliz-em-comentario.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2022.

 

Alguns biólogos antirracistas reivindicaram que o conceito de raça fosse banido dos textos e estudos acadêmicos, já que fora comprovada a sua inexistência e, pior, a sua letalidade sociopolítica. No entanto, outros estudiosos da mesma área, bem como os cientistas das Ciências Humanas defendiam a manutenção do termo por sua concreta existência social e política, presente nas relações entre os sujeitos da sociedade e nas estruturas racializadas pelo mundo. Assim, nasce, em 1920, o conceito de racismo.

Portanto, o racismo não é a existência de raças humanas e sim a crença nessa teoria que gera, no sentido sociológico, uma concreta segregação sócio-econômica dentro das sociedades. Porque a raça existe no imaginário do racista e não se define apenas no campo físico, mas também nos campos intelectual e social, gerando exclusões e diferenciações nos âmbitos das políticas públicas, dos postos de liderança, bem como nas oportunidades e direitos para os grupos vitimados pelo conceito e pela prática racista.

 
Sob esta perspectiva, o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça.
— Silvio de Almeida
 

Referências

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IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. 3. ed., revista e ampliada. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

MUNANGA, Kabenguele. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Sortilégio Da Cor: Identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003.

NOGUEIRA, O. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T.A. Queiroz, 1985.

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RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1a ed.; São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; QUEIROZ, Renato da Silva (orgs.) Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp/Estação Ciência, 1996.

SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 1976.

TELLES, Edward. Racismo à brasileira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.

THEODORO, Mário (org.), Luciana Jaccoud, Rafael Osório, Sergei Soares . As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea, 2008.


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Viviane Morais

Historiadora, graduada pela Universidade Federal do Ceará, doutora e mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Desde 2001 atua em instituições de educação, preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro.

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