Trabalho e Festa

Congada no Rio de Janeiro, fotografia de Arsênio da Silva, encomendada por Pedro II, 1860.

 

Os espaços públicos das capitais escravistas, no século XIX, funcionavam como territórios dinâmicos. Ocupados por trabalhadores urbanos, artistas diversos, nas praças, coretos e ruas, várias interações e manifestações culturais tornavam-se possíveis entre escravos, libertos e livres. Esse cenário, comum nas cidades coloniais, também se dava pelo fato de serem o espaço das instituições administrativas das províncias.

Coroação de um Rei nos festejos de Reis. Gravura do artista Carlos Julião (1740-1811).

Diferente da cultura europeia e semelhante à cultura tradicional africana, o espaço do trabalho – mesmo no regime escravista do Brasil – também era um espaço para o canto, para a dança, para o batuque e para a religião. A compreensão tradicional africana de mundo é de unidade, na qual o sujeito é um dos elementos que compõe o todo, assim representando um corpo impossível de ser compartimentado no que sente, no que sabe e no que manifesta. Essa foi uma das mais ricas heranças que forjaram as festas e manifestações de rua, no País.

No espaço público, o canto alegra quem trabalha e quem ouve; garante a união e a força coletiva de um grupo. O canto auxilia na cadência dos passos, dos arados; martelos; serrotes; facas; monjolos; peneiras; até do sabão que ensaboa; do braço que bate e torce a roupa no chafariz e nas beiras de rios.

Os cantos religiosos e orações abençoam todos os fazeres, iluminando os descendentes com os saberes ancestrais. Em cada atividade, passado e futuro se conectam através do sujeito daquela ação. Ele é o elo entre o aprendizado que herdou e o conhecimento que está deixando.

O marceneiro que faz o móvel, o santo e o púlpito da igreja faz, também, a flauta, a kalimba e a viola. Esse mesmo escravo, capaz de criar uma ferramenta de trabalho ou um instrumento musical também tinha que fabricar o instrumento de castigo para o uso violento do seu escravizador ou de outros.

O curtidor que trabalha o couro para fazer a sela, o arreio, as cadeiras, bancos e liteiras também faz o couro do tambor, do atabaque e do pandeiro.

O ferreiro faz uma infinidade de objetos para trabalhar ou aprisionar, mas também faz as louças das sinhás e das Ialorixás, bem como os instrumentos que cadenciam rodas de jongos, capoeiras e candomblés através dos agogôs, triângulos, e até mesmo a faca pra fazer ranger o prato e produzir ritmo.

Acervo Biblioteca Nacional

Músicos negros no cortejo de São Jorge. Rio de Janeiro, 1851. –– José dos Reis Carvalho.

Nas ruas, negros e negras cantavam e vendiam com seus tabuleiros, ofereciam seus serviços de ganho versando e batalhando nas rimas. Eles contavam histórias saudosas ou vitoriosas de sua terra natal para quem quisesse ouvir, enquanto faziam serviço de carregadores. No movimento do mercado ou no pregão dos ambulantes, levando carroças, liteiras ou mesmo quimoas, grupos de carregadores entoavam – em línguas variadas do continente africano, misturadas ao português – cantos e contos com pesados fardos sobre seus ombros ou sobre suas cabeças.

Alguns cantos tornaram-se característicos de determinadas profissões ou locais. Ainda hoje, perdura esse costume em feiras e mercados pelas regiões nordestinas do País. Vendedores ambulantes, em seu pregão, criam estratégias engraçadas ou aformoseadas para fazer seu produto se sobressair dos demais. Seja no grito, na rima ou no canto melódico, com ou sem instrumento, existe uma beleza elaborada pela cultura africana em nossas ruas.

Alguns poucos registros em tela, fotografia ou relato literário, ambulantes negros (escravos ou forros) são vistos portando pequenas marimbas, também conhecidas como kalimbas ou malimbas – um instrumento africano composto de meia parte de um côco no qual se prendem pequenas hastes de metal para serem tocadas com os dois polegares –. Os tambores, também muito presentes nos registros, de tamanhos e formatos diversos, tinham sempre uma oportunidade para se manifestarem, unindo descendentes e ancestrais na força dos elementos da natureza durante as longas horas na lida.

Grupo de escravos tocando kalimba e outros instrumentos, século XVIII –– Jean-Baptiste Debret.

Mesmo quando não havia instrumentos (seja por falta de recursos para confecção ou porque os senhores ou a atividade não permitiam, como nas lidas de lavouras), os africanos escravizados improvisavam com as próprias ferramentas, ou com seu próprio corpo, tirando sons, nos mais variados tons, acompanhados por complexas divisões vocais.

Qualquer que fosse o tema, era motivo de canto. Fosse um lamento doloroso, uma alegria momentânea, os corpos negros cantavam e dançavam enquanto desempenhavam suas obrigações. Em casos de senhores “mais brandos” ou “mais espertos” ou, ainda, para escravos que trabalhavam como músicos, por vezes, eram disponibilizados instrumentos musicais europeus. Não era incomum encontrar negros tocando violinos em cafés, barbearias, orquestras, bandas e coros das igrejas.

Africanos escravizados e seus descendentes aprenderam, de forma magistral, a musicalidade europeia. Músicos de diversas nacionalidades tiveram permissão para entrar em salões e igrejas e executar a música "branca" para os senhores escravistas. Eles também executavam as obras aprendidas por partituras ou de ouvido para dentro das senzalas e rodas urbanas, sendo, então, acompanhados por tambores e outros instrumentos africanos. Assim, nasceram as misturas complexas que, hoje, chamamos de Música Popular Brasileira. Única, complexa e incomparável, no mundo.

Eles aprendiam, ao ouvir e observar os brancos europeus. Ensinavam, uns aos outros, passando de boca a ouvido. Muitas vezes, essa era estratégia de melhores condições de vida e sobrevivência, dentro dos limites de um regime escravista. Uma vez que um escravo com habilidades específicas, principalmente as valorizadas na Europa (como a música) era negociado por um melhor valor e, às vezes, acabava retirado dos trabalhos pesados, de jornadas diárias que duravam de 12 a 18 horas, ou mais. No entanto, isso não o isentava da condição de exploração, submissão e humilhação escravocrata.

Muitos escravos urbanos desempenhavam duas, três profissões para aumentar o seu ganho, no final do dia. Sempre na esperança de conseguir alguma partilha com seus senhores e poder juntar recursos para, um dia, arrematar a própria carta de alforria, nas barbearias à céu aberto, pelas ruas das capitais, africanos cortavam barbas e cabelos enquanto misturavam línguas e instrumentos de sua terra natal com as dos europeus, criando uma nova tradição musical e costumes para os clientes e transeuntes.

Os mais ágeis no corte e no barbear apresentavam seus outros dons e habilidades, ofereciam outros serviços, como os de extração de dentes e aplicação de sanguessugas no tratamento de doenças.

Assim também faziam as mulheres, que trançavam cabelos com agilidade inacreditável, criando penteados elaborados e belíssimos, cadenciando o ritmo dos dedos com o ritmo de suas vozes à capela. Elas paravam para fazer o serviço de benzedeiras nas cabeças e nos corpos necessitados, sempre que lhes sobrava algum tempo.

Afinal, como dizemos hoje em dia, "o brasileiro é um sobrevivente, por natureza". Mas quem é esse brasileiro que sobrevive fazendo de tudo um pouco, dando um jeitinho de ganhar um pouco mais, sobreviver um pouco mais, criando acessos ao que a sociedade branca tem para oferecer? Onde esse Brasil do trabalho começou? Quem era o trabalhador deste território que, hoje, conhecemos como Brasil?

Interior of a gipsys house Brazil. Bahia, 1590–1900 –– Jean Baptiste Debret.

Além de cantar e batucar, os escravos dançavam. Em qualquer lugar formava-se uma roda de batuque que, naturalmente, evoluía para uma dança animada e 'frenética', segundo o termo de muitos historiadores. Debret cita em seus relatos:

..."o escravo parava na rua e começava a cantar; outros, que eram seus compatriotas, reuniam-se em torno dele. Acompanhavam-no com um refrão ou um certo grito, um tipo de refrão estranho articulado em dois ou três sons. Após o canto, começava uma pantomina improvisada por aqueles que iam para o centro do círculo. Durante a encenação, as faces dos atores ficavam possuídas por "delírio". Outros ainda batiam palmas, duas batidas rápidas para uma lenta. Com o fim da canção, o encantamento desaparecia; cada um seguia seu caminho friamente, pensando no açoite do senhor e na necessidade de terminar o trabalho que fora interrompido pelo "delicioso intermezzo". (apud GRAHAM, 1988, 322)

Além da dança recreativa, a dança do jogo lúdico ou ritual, na roda, havia a Capoeira, luta/dança com beleza inspirada nos animais e elementos da natureza, destinada à autodefesa, mas com golpes mortais capazes de imobilizar ou matar um inimigo. No século XIX, os negros de ganho e os carregadores ensinavam e praticavam essa luta/dança na rua, uma arma para quem não podia se armar, mas precisava se defender. Frequentemente, capoeiristas chegavam a ser presos por ferir ou mesmo matar um inimigo com um golpe.

Com o passar dos anos, a Capoeira foi proibida. Porém, quando a polícia não estava por perto, os escravos usavam os momentos de ócio jogando (praticando, ensinando e aprendendo) a arte da Capoeira nos mercados, praças e ruas das províncias.

O canto, a dança e o batuque, nas ruas das cidades, definiam o ritmo do trabalho, do lazer, da dor, do tédio, do banzo e da luta.

A presença dos ritmos e movimentos africanos marcavam, na cadência, no compasso, no som e na memória, a presença negra na História do Brasil.

Congados de Ouro Preto (outtake from Híbridos, the Spirits of Brazil) –– Vincent Moon.


Referências

ABREU, Brício de. Esses populares tão desconhecidos. Rio de Janeiro: Raposo Carneiro, 1963.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império In: História da vida privada no Brasil II: Império: a corte e a modernidade nacional, São Paulo: Cia das Letras, 1997.

ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vidas domésticas In: História da vida privada no Brasil I: cotidiano e vida privada na América portuguesa, São Paulo: Cia das Letras, 1997.

ARAUJO, Rosa Maria Barboza. A vocação do Prazer. 2ª ed., Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. Goiânia: Walfré, 1982.

BAPTISTA, Luis Antonio. A cidade dos Sábios. São Paulo: Summus, 1999.

CASTRO, Hebe M. Mattos. Laços de família e direitos no final da escravidão In: História da vida privada no Brasil II: Império: a corte e a modernidade nacional, São Paulo: Cia das Letras, 1997.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle époque. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1986.

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Viviane Morais

Historiadora, graduada pela Universidade Federal do Ceará, doutora e mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Desde 2001 atua em instituições de educação, preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro.

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