Escravidão Urbana

Quitandeiras em rua do Rio de Janeiro, 1875. Marc Ferrez –– Acervo IMS.

 

O meio urbano era um espaço de mobilidade para o trabalhador escravizado. Sua estrutura socioeconômica permitia a criação de diversos modos de resistência pela conquista à liberdade.

Havia, nas cidades, tipos diferenciados de trabalhadores. “Negros de ganho” ou “escravos de aluguel”, em atividades tipicamente urbanas, desempenhadas por negros forros ou escravizados.

Os forros eram relativamente autônomos. Custeavam o seu sustento e viviam como ambulantes. Já os escravos de aluguel atuavam livremente no mercado de trabalho, no entanto, sem ignorar a sua condição de escravo que se concretizava através da obrigação de entregar uma porcentagem dos seus ganhos ao seu respectivo dono.

Havia, ainda, outra modalidade de trabalhadores escravizados: os “da Nação”, e os pertencentes às municipalidades. Comprados com o dinheiro público, eles tinham suas condições de trabalho fixadas pelo Estado, a partir de leis que regulamentavam questões como o tipo de alimentação, indumentária e tratamentos que lhes deveria ser fornecido.

Grupo de escravos de ganho, na Bahia, obrigados a trabalhar o dia inteiro nas ruas e entregar o valor das vendas aos respectivos senhores. Reprodução do livro "Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia".

Nas cidades, as populações escravizadas produziam outras táticas de resistência. Com o trabalho de aluguel, o cativo conseguia algum dinheiro para tentar comprar a sua alforria. Tratava-se, também, de um espaço para aprender sobre as leis e estratégias burocráticas para se libertar, trocar de nome; fisionomia, ou ter acesso às notícias de jornais, aos anúncios recheados de características e artimanhas dos negros fujões pelo País.

O negro escravizado passou a elaborar uma nova história de vida, de sua experiência pessoal do cativeiro, de sua própria percepção objetiva sobre o lugar social em que se encontrava. Assim, criaram-se e foram aprendidos diversos meios de resistência. Tanto no campo quanto na cidade, alguns deles fugiam, deixavam-se roubar, mudavam de nome, trabalhavam de aluguel.

Escravas de ganho na Praça Castro Alves, em Salvador, Bahia, 1875. Marc Ferrez –– Acervo IMS.

Durante, praticamente, todo o século XIX, a propriedade escrava no espaço urbano estava empregada na produção e na venda de bens de consumo, ou organizada em trabalhos coletivos a partir de um comando de produção feito por um senhor de escravos.

Nos centros urbanos, as casas eram uma espécie de unidade de produção, distribuição e consumo. Grande parte do objeto pessoal e de uso doméstico era fabricado na própria residência, o excedente para ser vendido nas ruas, pelos próprios escravos das casas. Tais escravos eram chamados de "escravos de ganho".

Clichê do artista R. Lindeman, Bahia.

O comando das atividades ficava a cargo da mulher, a dona da casa. Era ela quem mantinha, sob controle, a limpeza da casa, a preparação dos alimentos, o comando das escravas… Além de dirigir a indústria caseira. Era de grande variedade, a mercadoria dos tabuleiros das escravas ou dos escravos: quitutes, bebidas, tecidos e toalhas bordadas.

Os escravos, além de atuar no comércio ambulante e nas vendas, agitando a cidade com seus gritos, também transportavam pessoas em pequenas cadeiras, prostituíam-se ou pediam esmolas.

Os escravos cuidavam de todas as necessidades dos seus donos e realizavam toda sorte de trabalho mecânico para eles. As formas de utilização do trabalhador escravo, bem como a forma de divisão dos lucros, podiam variar de casa para casa. Mas a vida cotidiana do escravo permanecia organizada e vigiada por seu dono.

Embora os escravos quase sempre fossem impedidos de compartilhar da riqueza que geravam, o fato de poderem circular em um ambiente urbano, a cidade do Rio de Janeiro, oferecia algumas possibilidades de ganhos adicionais.

O escravo habilidoso, dependendo do acordo prévio com seu dono, poderia ter parte do seu lucro assegurado. Os poucos que conseguiam prosperar poderiam comprar a sua própria liberdade e, até, investir seu dinheiro comprando escravos para servi-los, além de fazer diferenciados negócios envolvendo terras, alimentos ou jóias de ouro e prata.

Nas zonas de mineração, muitas vezes, as negras de tabuleiro não vendiam apenas alimentos, mas, também, seus corpos. Escravos de ganho podiam estabelecer uma vasta rede de contatos de trabalho. Escravos com habilidades – tais como carpinteiros e sapateiros – tinham vantagens sobre escravos menos qualificados.

Nas zonas de mineração, escravos escondiam ouro em pó ou diamantes para comprar a liberdade. Nessa mesma região, eles podiam ser recompensados com a libertação ao encontrar uma pepita grande ou um diamante valioso. Escravos que denunciavam seus donos por não pagamento de impostos também podiam ser libertados por ordem do governador.

Os africanos levam vantagem sobre os brasileiros nas minas, pois muitos já tinham prática na extração do ouro, principalmente os que vinham da região da Guiné. Nas cidades, porém, os afro-brasileiros levavam vantagem. Não apenas porque falavam o português e conheciam os costumes dos portugueses, como, também, contavam com uma rede maior de contatos para negociar sua liberdade. Os africanos, ao contrário, como não falavam a língua, não conheciam os costumes locais ou não tinham contatos, eram mais propensos a fugir de seus donos, especialmente durante os seis ou nove meses de “adaptação”. Não à toa, eram rapidamente recapturados.

Mulher negra escravizada com carregando uma criança branca nas costas, Bahia, 1870. –– Acervo IMS.

Outro tipo de trabalho bastante valorizado era o das escravas que faziam e lavavam roupas, e as que faziam rendas. As roupas eram lavadas em, pelo menos, três diferentes áreas da cidade. Batidas nos muros e estendidas no gramado para secar. Escravizados lavadores de roupas exerciam tal função para o seu próprio dono e ou para terceiros, em troca de pagamento.

Existiam algumas diferenciações de trabalho, segundo o sexo, ou melhor, a força do braço. As mulheres ocupavam-se mais com o negócio de produtos agrícolas e a produções domésticas e os homens negociavam mais produtos e animais. Havia, ainda, vendedores de ervas, feiticeiros, rezadeiras, curandeiros e guardiões dos mistérios das folhas para cura e reconexão com os ancestrais e deuses do continente africano.

De todos os tipos de serviços, o menos valorizado era desempenhado pelos escravos chamados de tigres. Eles desempenhavam um trabalho noturno, depois das dez horas da noite, levando baldes pesados, cheios de dejetos das casas para serem despejados na praia mais próxima. Esse serviço era, geralmente, praticado por escravos doentes ou velhos. Também era uma forma de castigo. Não se sabe, ao certo, a origem dessa denominação. Algumas fontes afirmam ser originada pelos respingos do balançar dos desejos sobre as cabeças que exerciam a função, gerando rajadas claras sobre a pele escura.


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Viviane Morais

Historiadora, graduada pela Universidade Federal do Ceará, doutora e mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Desde 2001 atua em instituições de educação, preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro.

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