Branqueamento
A teoria do branqueamento foi introjetada pela maioria da população brasileira, mesmo a quem possa desconhecer a sua origem.
Acreditar nas teorias racistas, formuladas na Europa e nos Estados Unidos, era conveniente para as elites brasileiras, pois, assim, seria possível legitimar e naturalizar as hierarquias sociais existentes no País, mesmo após o final da escravidão.
Na época, aceitar o racismo científico significava admitir que a nação brasileira, em sua maioria, era composta por uma população racialmente inferior.
Para superar esse obstáculo, foi formulada uma nova interpretação dessas teorias: a tese de branqueamento.
Ao ser superada e refutada, a partir da década de 1930, uma nova teoria foi cunhada para a manutenção da supremacia branca: a democracia racial – trazendo consequências profundamente negativas para a identidade negra –.
O imaginário do povo brasileiro foi profundamente marcado pela crença na ideia de que o Brasil havia se tornado uma democracia de raças. Ou seja, que não havia uma hierarquia entre classes pautada na condição racial.
Gilberto Freyre, na obra Casa Grande Senzala, de 1933, concretiza essa teoria que onera, oprime e exclui a população negra na busca pela reparação dos seus direitos, resultando no complexo fenômeno do racismo estrutural no Brasil. Também respondem, a essa ideia, os atuais altos índices de miséria, evasão escolar, cárcere, violências e mortalidade compostos pela população negra (parda e preta). Eis o retrato da população branca e da não branca, reproduzindo a mentalidade racista cunhada na estrutura socioeconômica do regime escravista.
Modesto Brocos (1852-1936), artista radicado no Brasil por mais de 40 anos, deixou eternizada, em uma de suas obras, uma das maiores representações da teoria do branqueamento.
No momento dessa produção, o Brasil dos senhores de escravos precisava resolver sua questão de “mão-de-obra”. E o Brasil da intelectualidade precisava resolver a questão da ocupação de cargos públicos e do gerenciamento da nação pela elite branca.
Sendo assim, a teoria do branqueamento, pautada em estudos científicos – contrariados décadas depois –, traz a solução para retirar o negro do futuro dessa história. Ele foi considerado a representação do atraso colonial.
Médico e diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda (1846-1915), no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911, escolheu a pintura de Brocos para ilustrar seu artigo sobre essa teoria. Prevendo, então, um processo completo de branqueamento da população brasileira na terceira geração de mestiçagem.
De forma velada e, por algum tempo, silenciosa, essa teoria foi responsável pela manutenção da crença na existência de raças humanas inferiores e superiores, que se materializa nas práticas racistas vistas diariamente no Brasil atual.
O título do quadro remete ao mito bíblico da maldição lançada por Noé sobre seu filho Cam (ou Cã). E o autor vem redimir o personagem através da inversão dessa maldição, já que a nova descendência de Cam, no Brasil, deixará de ser negra, como ilustrado no degradê de tons da pele avó preta, passando pela filha parda (mestiça) e chegando, enfim, no neto branco, descendente do pai branco, que assiste com orgulho a cena da sua contribuição.
O mito bíblico da maldição de Cam também foi utilizado como estratégia pelos sacerdotes católicos europeus para justificar a escravização da população negra na África durante a colonização, forçando tanto africanos quanto o seu próprio povo a acreditar que a escravidão e a morte de milhares de pessoas era justa, já que se tratava de um desígnio de Deus.
Isentando-se de qualquer culpa, os sacerdotes se preocupavam apenas com o fardo do cumprimento lucrativo das profecias divinas. Aos africanos, restava a aceitação, com a esperança de salvação após a morte, caso tenham cumprido resilientemente o fardo para ganhar a alma para ser salva.
Na versão moderna de Brocos, a redenção de Cam só era possível pela extinção total de sua raça, ou seja, do embranquecimento de seus descendentes.
Na década de 1870, um intenso debate sobre a modernização do Brasil e a construção de sua identidade nacional ocorria entre as elites políticas e intelectuais, tendo a questão racial como tema central.
O projeto imigrantista e a estratégia de europeizar a população nacional, através do branqueamento, nada mais foi do que um projeto de eugenia.
Incentivos e patrocínios para os povos vindo da Europa com a promessa de posse de terras, no Brasil, contrastava de forma gritante com o processo de abandono e discriminação dos povos negros, sequestrados de seus territórios, roubados em suas heranças, sem promessa alguma de política de reparação, no País. Pior, muitos deles se convenceram de que a única reparação possível dos seus patrimônios e descendência se daria através da miscigenação, do casamento interracial.
Segundo os teóricos e cientistas dessa tese, em pouco mais de um século, os negros já teriam desaparecido e os brancos seriam a maioria da população do Brasil.
Nesse cenário, uma grande quantidade de estratégias e ações eram tomadas para promover o processo de branqueamento. Não apenas por parte da elite branca, mas também, de uma intelectualidade negra que precisava e desejava ser aceita e ver sua descendência perpetuada.
Dentre essas estratégias, destacamos os registros manipulados das imagens de intelectuais, escritores, artistas, políticos e demais representantes desse processo de miscigenação. Suas peles e cabelos poderiam, no futuro, denunciar suas ascendências. Por isso, elas foram intencionalmente alteradas, descoloridas.
Ainda que a teoria do branqueamento esteja comprovadamente refutada, já que nós, negros, não sumimos – muito pelo contrário, somos a maioria da população brasileira –, suas consequências sociais, indentitárias e políticas ainda permanecem. Porque perduram nos registros da nossa história, em nossos jornais, livros didáticos e imaginário popular.
Montamos uma galeria de imagens (abaixo) com grandes intelectuais que são de ascendência negra, que têm peles pretas e pardas, cujos traços e tonalidades foram alterados em xilogravuras e pinturas ou descoloridos (esmaecidos) em fotografias da época.
É importante explicar que algumas imagens permanecem sendo reproduzidas em suas versões originais - outrora, podendo gerar desconhecimento com relação à nossa importância na história brasileira após a escravidão colonial -, mas esse fator já não dá conta de esconder o papel do povo preto, no passado e no presente.
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Referências
Schwarcz, Lilian Moritz. Espetáculo da Miscigenação. in Revista Estudos Avançados, 8 (20), 1994.
Santos, Ricardo Augusto dos. Branqueamento do Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2008.