Rua da Glória - Liberdade (São Paulo - SP)

A

Foto: Wikimedia Commons / Reprodução

 
 

O capítulo mais popularizado da escravidão é, com certeza, o da violência. Em qualquer livro de História, em qualquer novela ou filme, quando abordada a vida dos escravos, sempre se dá muito destaque aos açoites, castigos, humilhações e todos os incontáveis tipos de violências sofridas pelo escravizado.

É claro que nós, da Afrofile, não queremos resumir a incrível e rica história negra só a esse capítulo. Principalmente porque sabemos o peso que essa limitação significa, na vida dos seus descendentes. Sabemos o quanto ela nos afasta da possibilidade de nos identificarmos e de nos vermos representados nesses antepassados. Sabemos como é violento, quando somos crianças e jovens, reviver apenas esse aspecto do nosso berço cultural.

Todavia, esse tema também faz parte do resgate da nossa identidade, do nosso direito em reescrever a história negra em nosso País e recolocar os seus monumentos no seu devido lugar de valor e destaque. Monumentos que podem ser de superação e conquista, mas também de resistência à condição escravista, de manutenção de uma memória que precisa persistir para jamais se repetir outra vez. Esse é o caso da Rua da Glória e do Bairro da Liberdade, em São Paulo.

Assim como em muitas capitais, São Paulo também teve territórios negros renomeados durante o período Republicano. Alguns, para que a cultura branca elitizada se sobrepusesse à popular mestiça, outros, para que seus rastros de dominação e opressão fossem apagados do território e, assim, fossem evitadas cobranças e reparações futuras.

Lugares de castigos públicos como o Largo do Pelourinho (atual Largo Sete de Setembro), Largo da Forca (atual Praça da Liberdade) e o Cemitério dos Aflitos (atuais Rua da Glória e Rua Galvão Bueno), fizeram parte da paisagem urbana dessa importante cidade, que hoje é a maior metrópole do País. O Largo da Forca funcionou como ponto de enforcamento de condenados até metade do século XIX. O local era destinado aos castigos públicos de fugitivos ou rebeldes da escravidão, assim como toda sorte de condenados, que serviam de exemplo para coibir qualquer outro indivíduo que pretendesse se desviar dos padrões da época, ou do sistema escravista.

Ali próximo, também conhecido como Cemitério dos Enforcados, funcionou de 1775 a 1858, o Cemitério dos Aflitos, onde os excluídos, desclassificados, anônimos e escravizados da cidade eram enterrados, sem ritual ou identificação, largados à indigência – com exceção daqueles que tinham o acompanhamento e a proteção da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos – .

Fundada em 1720, a confraria servia para cuidar dos povos negros (escravizados, forros ou livres), cujas funções, dentre muitas outras, incluía cerimônias fúnebres, festas e devoções religiosas.

Trajeto até o local

Crédito: Wikicommons Pintura de Chaguinhas, que foi embranquecido, na Capela dos Aflitos, na Liberdade, em São Paulo

Foto: Wikicommons / Reprodução / Pintura de Chaguinhas, embranquecido, na Capela dos Aflitos, na Liberdade, em São Paulo.

Considerado o primeiro cemitério público da cidade, esse equipamento, na verdade, foi instituído para evitar que essa população “indigente” fosse enterrada dentro das igrejas, como era o costume da época. Costume exclusivo aos mais ricos e prestigiados.

Deixados em covas sem identificação, data ou epitáfios, os que jaziam no Cemitério dos Aflitos tornaram-se anônimos para a história e memória da cidade de São Paulo.

Na Capela desse cemitério, que recebeu seu mesmo nome, o misticismo mantido pela devoção popular e o lamento dos muitos aflitos geraram lendas como as de que as velas acesas, em volta, jamais se apagavam. Inclusive, devido à história de um dos negros alí supliciados, muito conhecida entre os populares, sugere a razão do nome da Praça e do Bairro: Liberdade.

Os soldados negros Francisco José das Chagas, mais conhecido como “Chaguinhas”, e Joaquim José Cotindiba, tiveram suas sentenças de morte executadas em 20 de setembro de 1821, por encabeçarem um motim pelo pagamento de soldos atrasados. Chaguinhas integrava o serviço militar, assim como outros negros alforriados no século XIX. Ele liderou uma rebelião em Santos contra o não pagamento dos salários.

Durante o enforcamento do cabo Chagas, a corda arrebentou e os espectadores gritaram “Liberdade! Liberdade!”, pedindo o perdão da pena, já que, na época, era comum perdoar o condenado ou comutar sua pena, em casos semelhantes. Dessa vez, não houve mudança alguma. Muito pelo contrário, a corda foi, novamente, colocada no condenado, e arrebentou mais uma vez. Os presentes gritaram: "Milagre!".

No entanto, mesmo consultado, o governo não teve misericórdia e autorizou sua morte a pauladas no chão da forca. Uma cena que revoltou a todos.

Com o tempo, populares transformaram “Chaguinhas” em um santo popular da Capela dos Aflitos, para onde seu corpo foi levado após a morte. Ali, passou a receber pedidos de milagres, junto à prática de colocar papéis em uma porta de madeira e bater nela três vezes (o número de vezes que a corda arrebentou).

Em volta da cela, onde Francisco José das Chagas aguardou a execução da pena, populares passaram a acender velas e fazer pedidos. Assim surgiu, em 1853, a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados.

Em 2018, um projeto de lei dos vereadores George Hato (MDB), Milton Leite (DEM), OTA (PSB) e Rodrigo Goulart (PSD) defendeu a alteração do nome da Praça da Liberdade, acrescentando a palavra Japão ao nome original.

Esse projeto, aparentemente trivial de políticos da cidade, revela o desconhecimento ou descaso da administração pública com a história popular. Mais uma vez, submetendo a história do povo negro brasileiro ao silenciamento, ao apagamento.

Nesse mesmo ano, entre as ruas Galvão Bueno e dos Aflitos, atrás da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, foram encontradas, ao todo, nove ossadas da época da escravidão, numa área particular de 400 m², cerca de um metro abaixo do nível da rua. O trabalho foi realizado com o aval do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Os imigrantes japoneses chegaram nessa região nos primeiros anos do século XX. Levando, para o território, sua complexa cultura: tradições, crenças, hábitos alimentares e diferentes aspectos culturais, também, importantes para a construção da cultura brasileira. A partir de meados da década de 1950, chegaram povos da China e da Coréia, que contribuíram para outros processos de alteração do bairro.

Quando cobramos que a memória negra seja trazida à superfície de nossa história, não significa que não compreendemos ou que não respeitamos a contribuição de outros povos e culturas em nosso território, mas, sim, que temos um dever cívico de não apagar ou sobrepor a história dos povos e culturas que formaram esta nação e os alicerces deste território.

 

Referências

REIS, Luis Gustavo. A Afro-Ásia: O bairro da Liberdade e o atropelo da História. Pragmatismo Político, São Paulo, 06/02/2019. 2019. Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2019/02/afro-asia-bairro-da-liberdade-historia.html Acesso em: 18/11/2022.

HUBNER, Beatriz. GALLONI, Fernanda. NEVES, Paloma. MORI, Stela. Bairro da Liberdade: o apagamento histórico da memória negra em São Paulo. Arch daily, São Paulo. 929303. 18/02/2020. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/929303/bairro-da-liberdade-o-apagamento-historico-da-memoria-negra-em-sao-paulo Acesso em: 18/11/2022.

REIS, Vivian. Arqueólogos encontram ossadas da época da escravidão em terreno no Centro de São Paulo. G1, São Paulo, SP, 06/12/2018. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/12/06/arqueologos-encontram-ossadas-da-epoca-da-escravidao-em-terreno-no-centro-de-sao-paulo.ghtml. Acesso em: 18/11/2022.

Um dos propósitos do Afrofile® é manter vivo e amplificar o conhecimento da história afro-brasileira para todos.
— Afrofile
 
 
 
 

Viviane Morais

Historiadora, graduada pela Universidade Federal do Ceará, doutora e mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Desde 2001 atua em instituições de educação, preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro.

Anterior
Anterior

Cais do Valongo (Rio de Janeiro - RJ)

Próximo
Próximo

Aparelha Luzia (São Paulo - SP)